Por que não Deus? Investigando as razões ocultas por trás da rejeição da Hipótese Deus pela academia – Conclusão

À guisa de conclusão, terminaremos esta alongada série com dois artigos, este e o próximo. Neste, buscaremos amarrar o raciocínio desenvolvido ao longo dos 20 precedentes, o próximo tratará da contribuição de grupos que têm buscado (re)habilitar a hipótese Deus na academia.

Nosso raciocínio se desenvolveu em três dimensões: do campo acadêmico, do paradigma científico e da cultural ocidental.

Procedemos semelhantemente à cozinheira no ato de descascar uma cebola, removendo camada por camada, da casca em direção ao centro.

Na casca e nas camadas superficiais encontramos o modus operandi do campo acadêmico, com seus agentes e interesses. Os agentes (cientistas, acadêmicos, pesquisadores) produzem conhecimento ao mesmo tempo em que lutam pelo capital simbólico, buscando manter e aumentar seu prestígio, autoridade e, consequentemente, poder. As regras inerentes ao campo não se sedimentam tão somente na busca pela verdade e, menos ainda, numa pretensa neutralidade objetiva. Diversamente, os cientistas profissionais são induzidos a instrumentalizar o conhecimento, não necessariamente para fazer a ciência avançar, mas para ingressar no campo, circular nele, acumular capital e adquirir troféus. Os indivíduos que pretendem entrar no campo, permanecer nele e ascender para posições de destaque agem inconscientemente em favor da manutenção do prestígio do campo e na defesa da validade do paradigma que o sustenta.

Portanto, a academia constitui um espaço de socialização e hierarquização, de dominação e lutas tal como ocorre em qualquer outro campo social. A produção acadêmica é a resultante da busca pelo conhecimento associado às condições em que ocorre tal busca.

A atividade acadêmica envolve um habitus que se assenta sobre determinada illusio. O primeiro refere-se às disposições mentais e práticas que são mutuamente construtivas num processo dialético de internalização/influência operada entre o campo e os indivíduos que fazem parte dele. No campo acadêmico, ele é moldado por mecanismos relacionados à socialização dos indivíduos na academia (universidades, laboratórios, think thanks, ….). Acadêmico é todo aquele indivíduo que se adequa ao campo absorvendo seus valores e normas.

O habitus acadêmico estabelece os critérios para ingresso e permanência, orienta a trajetória profissional e baliza as estratégias de ascensão entre pares-competidores. É dessa maneira que o campo condiciona as disposições que orientam os acadêmicos na escolha dos temas de pesquisa, na forma como escrevem, nas referências teóricas que utilizam, e, sobretudo, naquilo que acreditam. O vocabulário, as disputas, seu capital típico, as hierarquias internas e o valor dos troféus são instituídos pelas dinâmicas internas ao campo e absorvidas pelos indivíduos no processo de socialização que ocorre em seu interior.

O que importa para o assunto que estamos debatendo é que o habitus determina, no nível prático (tácito), o crivo do permissível ao mesmo tempo em que reproduz estigmas. Por razões que serão revistas a seguir, ele forma uma mentalidade crítica e cética em relação a conceitos metafísicos ou de viés transcendente. Consequentemente, os acadêmicos desenvolvem inconscientemente uma indisposição com a ideia de Deus, e creem que tal pode “afetar” a sua investigação é certamente a sua trajetória profissional, posto que a aceitação de Deus é tida como incompatível com os princípios inerentes ao campo.

O conceito illusio, por sua vez, explica porque o acadêmico, embora lide ordinariamente com a atividade reflexiva, não lança olhares críticos sobre os seus próprios pressupostos.

O campo produz efeitos illusio quando seus participantes naturalizam as regras do campo. Os participantes aceitam “jogar o jogo”, internalizam-nas e, então, laçam estigmas sobre ideias dissonantes e pessoas que as professam. Os agentes consideram natural rejeitar acriticamente determinadas abordagens que fogem ao seu metiê, da mesma maneira que aceitam se submeter a determinadas ideias sem as verificar, crendo que essa trama de crença e descrença são obviedades, em outras palavras, constituem ‘algo natural’.

A produção de conhecimento no campo está  condicionada tanto pelo habitus, quanto pelo illusio, ou seja, as teorias, métodos e objetos considerados legitimos não são objetivamente ancorados em critérios de verdade, mas de validade. Sendo que a circunscrição do que é válido é feita respeitando duas condições. A primeira é que a escolha é realizada pelos agentes do campo, em outras palavras, por aqueles que já se encontram comprometidos subjetivamente com determinadas teorias, métodos e objetos. A segunda é que o campo e, consequentemente, seus agentes, encontram-se enredados por um paradigma científico.

Retomando a imagem da cebola, nas camadas intermediárias atingimos o segundo nível e nele encontramos o paradigma.

O paradigma é o conjunto de pressupostos que determina e viabiliza a prática cotidiana da reflexão científico-filosófica. Circunscreve o campo acadêmico determinando leis, teorias, aplicações e instrumentos considerados válidos pela comunidade científica. Ele fornece os pressupostos teóricos sobre os quais se assenta a reflexão produzida no campo.

As escolhas realizadas pelos agentes, embora racionais, não são livres; diversamente, decorrem dos pressupostos ancorados no paradigma vigente.

É necessário reconhecer que a influência é mútua, influencia sendo influenciado. Ou seja, ao mesmo tempo em que o paradigma constrói o campo acadêmico é construído por ele, num segundo processo dialético semelhante ao que se dá entre o campo e seus agentes. Este fato explica a ocorrência de mudanças acumulativas ao longo do tempo. Porém, é igualmente premente constatar que tais modificações são necessariamente incrementais, sempre respeitando certas disposições elementares que o caracteriza. As mudanças ocorrem conservando o paradigma, as alterações se dão nos limites da conservação da identidade. Em outras palavras, as novidades se dão invariavelmente comprometidas com certos princípios que caracterizam o paradigma enquanto ‘aquele paradigma específico’.

Portanto, não se admite alterações substanciais que poderiam se dar por meio de saltos radicais. Se tal ocorrer não se está falando mais sobre ‘aquele paradigma específico’, mas a respeito da sua superação na forma de uma revolução científica (nos termos de Khun).

No caso do paradigma atual, percebe-se duas características fundamentais: seu caráter é imanentista e a sua fonte de legitimidade perante o campo e à própria sociedade é a pretensa neutralidade racional do pensamento teórico.

Em suma: o campo acadêmico está enredado pelo paradigma imanentista que se sustenta na ideia de que a realidade é equivalente (ou tão somente) ‘realidade imanente’. Consequentemente, todas as perguntas críveis estão condicionadas a este imperativo e as respostas admitidas devem ser encontradas no mundo sensível, sendo, portanto, objetada qualquer hipótese que venha a escapa-lo.

Quando se observa tal base de legitimidade, percebe-se que seus imperativos revelam-se como espécies de fé religiosa. Pois, o que leva o paradigma a afirmar que só existe o imanente e que o pensamento teórico é verdadeiramente imune à contaminações? Tais afirmações não são produtos do mesmo tipo de reflexão preconizada, mas tratam-se de axiomas taxativos. Em outras palavras, não são consequências da própria reflexão teórica, mas seus pressupostos que vicejam imunes à crítica.

Para demonstrar a fragilidade do paradigma imanentista, basta questionar se o fato de algo não ser ‘natural’ implica ser inexistente? Milhares de fenômenos não são respondidos a partir do primado da matéria, então, por que é menos crível arguir acerca de causas não-materiais do que afirmar, como se costuma fazer sempre que confrontado a casos embaraçosos, que a resposta requer novas evidências futuras que virão para salvar o dogma da matéria?

Por outro lado, a fonte de legitimidade do paradigma é o mito da neutralidade da reflexão teórica o que equivale ao mito da primazia da razão. Trata-se do dogma que afirma que a racionalidade é precondição do conhecimento verdadeiramente autoritativo.

O Iluminismo em geral e Kant em particular são os responsáveis por esta mistificação. A pretensa objetividade neutra do pensamento teórico não passa de outro axioma. Pois é resultante de uma construção teórica que se tornou contingencialmente o princípio inquestionável do campo acadêmico. Um dogma que poderia ser facilmente criticado em decorrência de sua incongruência interna, posto que a racionalidade é admitida como selo de legitimidade da própria racionalidade. Em outras palavras: o legado kantiano acredita que é possível haver conhecimento objetivo em função do pensamento teórico e a base dessa crença é a própria razão humana. Nada mais dogmático do que presumir que a razão pode por si mesma conferir legitimidade ao que a razão cria.

Concluímos que o paradigma enraizou na ciência dois mitos. Estes mitos dogmáticos influenciam todo o resto da atividade científica, desde a forma como os fenômenos são apreendidos até a maneira como são interpretados, compreendidos e descritos.

Considerando a exposição imediatamente anterior, procedemos ao longo da série com ponderações acerca do que seja conhecimento legítimo, buscando reabilitar o pensamento não-teórico como sendo reflexão válida, embora não detalhista. Porém, o que importa nos limites temáticos deste trabalho não é a natureza do pensamento, mas as raízes do dilema da negação da ‘hipótese Deus’.

Para tanto, o problema da neutralidade racional é percebido como o responsável por camuflar os pressupostos cosmovisionários que bloqueiam a hipótese Deus. Tal está firmado na cultura e não na atividade científica, como se verá a seguir quando atingirmos o centro da cebola. Já o caráter imanentista do paradigma, ordena que toda operação da reflexão teórica ocorra exclusivamente dentro dos limites do próprio mundo observável, através da natureza, suas leis físicas e processos materiais.

Alçando à dimensão prática do caráter imanentista do paradigma, percebe-se que na história recente ele se desdobrou em dois pilares. De um lado, o naturalismo sustenta a premissa de que os fenômenos do universo são explicados pelo próprio universo. De outro, o materialismo, que tem como premissa que a realidade é constituída exclusivamente por matéria e energia, e que todos os fenômenos, incluindo os mentais e sociais, só podem ser explicados em termos de interações físicas e materiais.

Tais enfoques excluem causas sobrenaturais, argumentando que tudo o que existe e acontece deve ser compreendido através da observação, experimentação e análise empírica, mantendo-se restrito ao que é imanente, ou seja, inerente à natureza e ao mundo físico.

Esses pressupostos têm obtido sucesso em muitas áreas, proporcionando avanços tecnológicos. Contudo, eles também impõem restrições epistemológicas que limitam a capacidade da ciência de explorar e explicar fenômenos que não se encaixam perfeitamente dentro desse hermético quadro teórico-metodológico.

As diversas ciências especiais que se desenvolvem com o estudo de partes específicas da realidade acabam sintetizando respostas provisórias para os dilemas essenciais, sempre focalizando em seu próprio campo de interesse, negando ou negligenciando os demais e, consequentemente, se afasta da unidade de sentido que é aquela que realmente importa quando lidamos com a realidade no dia a dia, na reflexão ordinária.

Tal situação produz o fenômeno dos “ismos” (economicismo, historicismo, biologismo,…) que acaba sendo a consequência, igualmente reveladora, da incapacidade do campo sintetizar respostas satisfatórias para questões existenciais nos limites do paradigma imanentista.

O insucesso do empreendimento científico-filosófico quando confrontado aos temas essenciais da existência já é patente, demonstrando o exaurimento do duplo eixo do paradigma. Porém, sua crise é um evento traumático que tende a ser refreado ao limite, posto que é permeado de resistências. Consequentemente, a insatisfação com o naturalismo e com o materialismo engendra, em primeiro lugar, frustração com a própria atividade científica, produzindo o desalentador fenômeno cultural da pós-verdade. Por outro lado, verifica-se a emergência do relativismo que, para não negar a natureza imanentista do paradigma, opta em atacar a própria noção de verdade. Nada mais frustrante, esterilizante e perigoso.

No centro da cebola descascada detectamos a raiz do dilema, o motivo-base que enlaça não apenas a atividade intelectual mas a própria cultura ocidental.

A cosmovisão prevalecente no Ocidente contemporâneo é condicionada por dois motivos-básicos, o primeiro deles é o da natureza. A estruturação do materialismo e do naturalismo são alicerçados na suposição de que a natureza é um sistema fechado de causalidades e regularidades. No pólo antagônico, encontra-se o motivo liberdade, que enfatiza a autonomia humana, a criatividade e a capacidade de transcender às limitações materiais/naturais.

Aqui não se está falando de atividade científica, mas da cultura em si. Em grande medida, a crença cultural se sustenta e é sustentada pela atividade científica, mas é inevitavelmente mais ampla. Neste nível nuclear encontramos a fonte de validade da produção acadêmica ao mesmo tempo em que percebemos seus efeitos mais profundos, posto que essa mesma produção estabelece e defende pressupostos culturais.

A verdade é que o Ocidente ‘funciona’ assentado sobre essas duas ideias-força a natureza estável e o ímpeto criativo livre do ser humano. O problema é que as duas são mutuamente excludentes. Em algum nível ou instância um pólo acaba por negar o outro, engendrando uma dialética insolúvel. Consequentemente, as diversas linhagens teóricas que buscam lidar com o tema da origem e do sentido de ’tudo o que há’ são tentativas de negar um dos polos em favor do outro ou de buscar em vão conciliar essa dicotomia insuperável.

Desvendamos assim a dinâmica multidimensional que resulta no fato social da academia negar a hipótese Deus. Mas por que essa dinâmica não é visível? Justamente porque os axiomas são pressupostos camuflados e, como tais, não são criticados, não passam pelo crivo da avaliação ponderada e jamais são postos em perspectiva. Estes axiomas são pressupostos tomados como certos, dados, válidos e, por isso, não são contestados em nenhuma hipótese.

A sentença final então é a seguinte: forças contingentes que se desenvolvem no Ocidente fazem com que o pensamento teórico seja incompatível com a hipótese Deus. A trama se desenvolve no plano dos agentes que operam no campo acadêmico que é enredado pelo paradigma imanentista e que, por sua vez, encontra-se imerso à cosmovisão condicionada aos axiomas inerentes aos motivo base natureza-liberdade.

Tais condições explicam a impossibilidade de se admitir a hipótese Deus. Não porque a proposição em si seja absurda ou porque esteja fatalmente esvaziada de razoabilidade, nada disso. O que ocorre é uma incompatibilidade entre os pressupostos e as repercussões que decorrem da referida hipótese.




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