Como temos constatado nos artigos precedentes, no Ocidente, o pensamento teórico sintetizado no campo acadêmico, enredado pelo paradigma imanentista e condicionado pelo motivo base natureza-liberdade é incapaz de admitir a hipótese Deus. Não porque a proposição em si seja absurda ou porque esteja fatalmente esvaziada de razoabilidade, nada disso. O que ocorre é uma incompatibilidade entre os pressupostos e as repercussões que decorrem da referida hipótese conforme será demonstrado nas linhas seguintes deste artigo que caminha para o final desta série.
Os axiomas são os pressupostos camuflados e que, por isso, não são criticados, não passam pelo crivo da avaliação ponderada e jamais são postos em perspectiva, são aquelas ideias-força tomadas simplesmente como certas, dadas e válidas.
O método como parte do pensamento teórico não é imune às influências axiomáticas. Por exemplo, o naturalismo afirma que o universo e todos os fenômenos nele contidos são derivações imediatas da própria natureza, tal constatação engendra um método de apreensão da realidade intolerante ao que escapa à “autocriação natural”. A hipótese Deus, não se adequa a este axioma, visto que propõe uma explicação para a origem e o sentido da realidade que transcende a ideia-força naturalista quando estabelece o pressuposto de que há uma inteligência superior que escapa ao cosmos conhecido. Se o ponto de partida passar a ser este segundo, tem-se necessariamente uma base diferente para a reflexão metódica, que deve se adequar a um alicerce axiomático cujo escopo é mais amplo do que a “autocriação natural”.
Refletindo dessa maneira, concluímos que o problema não está na metodologia científica, mesmo porque a hipótese Deus é fortemente embasada em evidências e resiste a critérios de objetividade científica, o problema reside no axioma que estabelece o critério teórico que delimita a metodologia científica em voga.
A neutralidade da razão, por sua vez, é um mito que serve apenas como um subterfúgio para blindar o axioma oculto que deriva do motivo-base e se consagra no paradigma imanentista.
Se se admite que o mundo é resultado de si mesmo, como quer o polo natureza do motivo-base, não é possível haver outra espécie de paradigma senão aquele que rejeita peremptoriamente a ideia de transcendência. Se, ao contrário, romper-se com o axioma para admitir-se a transcendência como uma ideia válida, ainda que concebida hipoteticamente, o paradigma deixa de ser necessariamente imanentista, abrindo-se para um elenco novo de hipóteses, dentre as quais pode figurar aquela que estamos advogando em favor.
A condição para que a hipótese Deus torne-se admissível depende do fato de que antes os pressupostos axiomáticos em voga sejam revistos.
Não se trata portanto de distinguir o falso do verdadeiro, mas de compatibilizar hipóteses a axiomas.
Em outras palavras, a dualidade fundamental entre natureza e liberdade molda a maneira como a realidade é compreendida e explicada, condicionando as abordagens teóricas, científicas e filosóficas, consideradas admissíveis no âmbito do paradigma imanentista. Este último, por sua vez, estabelece os critérios de veracidade que delimitam as opções de pesquisa dos atores que se articulam no campo acadêmico. Enquanto este motivo-base, o paradigma e as regras do campo acadêmico forem os que aí estão, a hipótese Deus encontrará resistências inquebráveis para ser admitida como uma das alternativas críveis para explicar a origem e o sentido da realidade.
Consequentemente, a opção explicativa Deus só pode ser admitida como uma alternativa crível, mediante um deslocamento no motivo-base que orienta o pensamento teórico. Isso porque é neste alicerce que se assenta o paradigma imanentista que, por sua vez, circunscreve os limites e fronteiras do campo acadêmico. A incorporação da perspectiva transcendente requer uma reavaliação das premissas fundamentais que, em última instância, guiam a investigação e a interpretação da realidade.
Porém, o assunto não se processa em terreno neutro, no qual as mentes possam ser honestamente persuadidas. Diversamente, para uma tal disrupção, seria necessário quebrar a resistência de milhares de acadêmicos que têm acumulado capital no campo conformados à atual “regra do jogo” e, por isso, vem acessando troféus justamente por alcançarem notabilidade nos termos dos pressupostos dominantes.
Sendo assim, não basta que intelectuais bem-intencionados operem pressão interna ao campo acadêmico para alargar seus critérios de plausibilidade, seria necessário uma verdadeira revolução, uma disrupção científica que poria o paradigma em voga no chão questionando frontalmente o motivo-base natureza-liberdade e todo o edifício teórico-metodológico que se alicerçam nele.
Portanto, não se trata apenas de uma disputa sobre a convencionalidade, nem se trata de debater a adequação de teses aos critérios objetivos da produção do conhecimento, diversamente, exige-se romper com uma trama de viés sócio-político que determina o sucesso ou o fracasso de milhares de agentes dispostos a defenderem seus próprios privilégios na hierarquia interna ao campo acadêmico.
Seria necessário subverter a condição que tornam excluídos ou párias todos intelectuais que ousam ofender o mainstreamao defender a hipótese Deus. Implica na admissão de que as teses dominantes, responsáveis pela distribuição de capitais e troféus, estão profundamente equivocadas e que, portanto, esses mesmos capitais e troféus devem ser redistribuídos em favor dos pesquisadores que atualmente são excluídos ou considerados párias do campo, que deixariam de ser marginalizados para passarem imediatamente à posição de possíveis dominantes.
Analogicamente é o mesmo que se processa em uma revolução social, onde os oprimidos derrubam os opressores num golpe de força. Portanto, devemos presumir que, como qualquer revolução, é necessário que uma série de condições sejam reunidas e ensejem uma conjuntura objetiva que favoreça a “virada de mesa”.
Do contrário, a aceitação da hipótese Deus segue enfrentando desafios significativos decorrentes da profunda influência do motivo-base natureza e liberdade que não admite a transcendência e enseja, por sua vez, um paradigma imanentista e que condiciona as decisões estratégicas relacionadas ao poder e prestígio dos agentes que atuam no campo acadêmico.
O pensamento teórico, tanto a ciência quanto a filosofia ocidentais, estão enraizadas em uma visão de mundo que valoriza explicações naturais e a autonomia humana, que não tolera a ideia de transcendente e que desvirtua o objetivo fim da produção de conhecimento que é a descoberta da verdade.
No entanto, não podemos negar que há sinais de que essa visão tem graves fissuras, suas respostas não dão conta de se adequarem às evidências e que as teorias consagradas revelam-se progressivamente insuficientes para explicar as questões e temas fundamentais sobre a realidade.
Em suma: enquanto vigorar o estado de coisas atual, é impossível que a hipótese Deus seja admitida como uma das alternativas críveis para explicar a origem e o sentido da realidade, apesar do evidente fracasso da convenção acadêmica atual.