Por que não Deus? Investigando as razões ocultas por trás da rejeição da Hipótese Deus pela academia – Parte 08

Na busca por estabelecer as bases teóricas da tese que se pretende sustentar nesta série, temos apresentado as teorias de três eminentes pensadores do século XX. Já analisamos Thomas Kuhn e Pierre Bourdieu, agora apresentaremos aspectos do pensamento de Herman Dooyeweerd um jusfilósofo holandês que tem sido publicado recentemente em nosso idioma.

 

Dooyeweerd argumenta que a cultura é fortemente condicionada por motivos básicos que não são de natureza intelectual, mas religiosa.

 

Neste caso, ele não designa ‘religião’ como sendo confissão religiosa, mas como o conjunto de pressupostos e crenças fundamentais subjacentes ao ato de refletir e que moldam a maneira como experimentamos, compreendemos e interagimos com o mundo. Bases axiomáticas que dirigem a maneira como enxergamos a natureza da realidade, do ser humano e do cosmos. Tais pressupostos e crenças não são explícitos ou conscientes, porém influenciam profundamente todas as nossas atividades reflexivas, incluindo a produção de conhecimento.

 

Dooyeweerd traz como seu próprio pressuposto a crença de que a religião está na raiz de toda a existência humana. Isso porque o ato de pensar implica em responder questões relacionadas ao próprio propósito do ato de pensar. Em outras palavras, para que se possa compreender qualquer coisa, antes devemos nos indagar sobre nossa origem, razão de existir e propósitos, questões que são tipicamente religiosas e se expressam em perguntas do tipo: de onde eu vim? Por que estou aqui? Para onde estou indo?

 

Ainda que tais indagações encontrem respostas imanentistas, como aquelas sugeridas pelas correntes de base materialista e naturalista, a explicação mantém necessariamente uma natureza religiosa, pois jamais se baseia em dados conclusivos e requerem inevitavelmente um salto de fé. As questões fundamentais também nos remetem necessariamente a “um ato criativo”. Por exemplo, para os criacionistas, tal ato resulta da decisão de um criador pessoal, enquanto para os naturalistas, a força criadora é a própria natureza.

 

Criação e fé não são aspectos exauríveis tão somente pela reflexão rigorosa ou pela atividade metódica típicas das práticas filosófica e científica, mas dizem respeito a axiomas, ou seja, a disposições religiosas. Daí Dooyeweerd recorrer à expressão ‘religião’ como base para o ato de pensar.

 

Partindo dessa constatação, Dooyeweerd diferencia dois tipos de reflexão: o pensamento ingênuo (ou ordinário ou pré-teórico) e o pensamento teórico. O primeiro refere-se à maneira não-especializada com a qual as pessoas lidam com o mundo. Na prática, contrariando Kant, o autor afirma que as pessoas percebem e interagem com a realidade de forma imediata, absorvendo o sentido das coisas nelas mesmas,  sem a necessidade de abstrações complexas, conceitualizações imbricadas ou teorias.

 

No pensamento ingênuo, as diferentes dimensões da realidade não estão separadas em modos estanques ou em categorias distintas. As pessoas percebem uma unidade interconexa de tudo com tudo, simplesmente experimentam a realidade em sua riqueza e diversidade de sentido.

 

Vou exemplificar com uma cena cotidiana, como a relação de um indivíduo com a sua geladeira: quando a pessoa abre a sua geladeira para pegar um suco, ela não reflete sobre a relação jurídica inerente ao fato daquela geladeira e aquele suco serem sua propriedade. Não pensa nas complexas leis da termodinâmica que mantêm o suco gelado, nem nos processos industriais que trouxeram o eletrodoméstico e o líquido até ali. Ele não abstrai as operações matemáticas que está realizando quando estima a quantidade que deve despejar no copo de maneira a evitar exaurir o suco e assim possa guardar um pouco para mais tarde. Não pondera sobre as razões biológicas que o levaram a desejar hidratar-se com o suco, nem acerca da influência histórico-social sobre o seu paladar que exibe preferência por suco ao invés de leite ou chá. Seu foco está na experiência imediata de manusear o equipamento e saciar a sua sede.

 

Percebe a inexistência de preocupações tipicamente teóricas, o que se verifica é simplesmente a experiência.

 

O pensamento teórico (científico), por outro lado, é caracterizado pela busca sistemática, metódica e rigorosa de explicar a realidade em seus detalhes não percebidos na interação cotidiana. Tal forma de pensar envolve abstrair, fragmentar e analisar particularidades verificadas na realidade que é necessariamente integral. Em vez de captar a experiência imediata, ele busca compreender as leis e princípios subjacentes que governam os fenômenos.

 

A ciência é dividida em várias disciplinas especializadas, cada uma focando em aspectos distintos da realidade (como física, biologia, sociologia etc.) que em si mesma é uma e integral. Cada disciplina desenvolve suas próprias metodologias e teorias para investigar uma área specífica a fim de descortinar detalhes da realidade, sistematizá-los e explicá-los.

 

Afastando-se da dicotomia grega que opõe doxa e episteme, que no mundo moderno enseja a qualificação e hierarquização dos conhecimentos considerados legítimos e aqueles de segunda classe, Dooyeweerd argumenta que o pensamento ingênuo é a base do científico. O autor não reproduz o consenso de que o senso comum é um pensamento inferior e contaminado enquanto a reflexão científica e presumivelmente rigorosa e verdadeira. Ao contrário, para ele, o pensamento científico serve tão somente para explicar detalhes.

 

Ambas formas de refletir encontram-se sustentados nos pressupostos axiomáticos que correspondem ao que Dooyeweerd caracteriza como sendo a dimensão religiosa.

 

Dooyeweerd argumenta que toda forma de conhecimento, incluindo o conhecimento científico, é baseada em pressupostos religiosos, ou seja, em crenças fundamentais não examinadas e não submetidas ao crivo crítico mas que moldam a maneira como percebemos e investigamos a realidade. Assim, mesmo a ciência, que muitas vezes se considera neutra e objetiva, é influenciada por uma visão de mundo que possui raízes religiosas.

 

Ele argumenta que não existe um pensamento puramente neutro; os cientistas sempre operam a partir de uma perspectiva subjacente, que molda sua abordagem e interpretação dos dados científicos.

 

Em cada época um conjunto de pressupostos religiosos alicerçam a forma da sociedade pensar. Dooyeweerd dá o nome para estes de “motivos base religiosos”. Ao descrever a cultura Ociedental, o autor distingue quatro motivos básicos dominantes, três dos quais condicionam épocas específicas da história ocidental. São eles: forma e matéria; criação/queda/redenção; natureza e graça e natureza e liberdade.

 

No próximo artigo discutiremos cada qual , destacando aquele que circunscreve e afeta o paradigma científico contemporâneo ensejando profunda influência na forma como a ciência lida com o tema da origem e sentido da realidade.

 

Não percam!

 

 




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