Afinal, por que voltar a ponderar a relação entre Deus e a ciência/filosofia? Simplesmente porque é um assunto que não se esgotou e, pelo contrário, ganha força e contornos inéditos com as controvérsias públicas que vêm se desenvolvendo através das novas mídias digitais.
São centenas de palestras, debates e monólogos transmitidos e sendo postados diariamente em plataformas como YouTube, Instagram, Facebook, dentre outras. Igrejas que dedicam parte da escola dominical ao assunto, intelectuais públicos de diversas denominações ocupando espaços em diferentes podcasts e programas de entrevistas voltados não para o público cristão, mas para a audiência em geral. Realça-se o fato de se tornar um acontecimento recorrente que tais espaços de mídia “estourem” seus “views” quando tratam justamente da relação entre fé e razão ou Deus e ciência. Uma evidência do crescente fascínio pela interação entre conhecimento rigoroso/metódico e a hipótese Deus, mostrando um resiliente interesse da população em geral e dos crentes em particular sobre o assunto.
Focando na realidade brasileira, sabemos que a nossa sociedade demonstra pretender juntar-se à torrente histórica secularizante que abandonou as antigas tradições para aderir ao projeto racionalista que concentra a autoridade no saber metódico/racional substancialmente material-naturalista e, consequentemente, nos cientistas e filósofos coroados de glória pelos pares da academia que encarnam esta mesma vocação. Ao mesmo tempo, nos surpreendemos com os censos que mostram as proporções de crentes em relação ao número geral da população, apresentando não apenas resiliência como alteração ascendente em alguns perfis. Presumimos que seja em função disso, parte da razão para que o tema permaneça colocado.
Assumimos a hipótese de que o crescimento do interesse pelo específico debate em tela deve ter relação com o perfil desse “novo crente”, que tem se tornado crescentemente evangélico no lugar de catolico e vem atingindo níveis superiores de renda/escolaridade.
Segundo o IBGE, em 2010 o número de cristãos no Brasil era de 86,8% da população, sendo desses, 64,6% católicos (decrescendo) e 22,2%, evangélicos (crescendo). Dez anos depois, o DataFolha divulgou uma Pesquisa com ampla amostragem apontando que 50% dos brasileiros permanecem católicos e o público evangélico cresceu para 31%. Entre os que não têm religião ou não declararam, o número permaneceu estável próximo aos 10% em ambas pesquisas, indicando que não houve aumento expressivo no número de não-fiéis, mas uma transição dentro do cristianismo.
O catolicismo escolástico estabeleceu um equilíbrio entre os campos científico e religioso, especialmente em função da reflexão tomista que associa natureza e graça da qual deriva a teologia natural que pretende harmonizar os dois mundos físico e transcendente. Este fato pode ter sido responsável pelo abrandamento da tensão no período de domínio do Vaticano. Porém, o público evangélico crescente que (como persona), até recentemente deplorava a ciência, agora passa a aspirar um novo ponto de equilíbrio.
O perfil do evangélico mudou, as pesquisas mostram serem mais jovens que os católicos e terem uma escolaridade equivalente. Além disso, o crescimento do número de evangélicos diversifica os seus “tipos”. No passado, era fortemente sedimentado nas camadas sociais empobrecidas, mas agora atinge públicos com maior poder aquisitivo e nível de instrução (mais anos de escolaridade). Óbvio que a mudança do perfil altera suas áreas de interesse típicas.
O crente dotado desse renovado perfil (1) se expressa em mídias digitais e (2) se preocupa em compatibilizar sua fé com seu estoque de conhecimento obtido na trajetória escolar/acadêmica. Consequentemente, este novo cristão (evangélico, jovem, com maior renda e escolaridade) acaba por renovar e alimentar a controvérsia em tela. Por isso, verifica-se o “boom” de publicações, canais, perfis e debates hospedados nas mídias digitais sobre a relação Deus e a ciência/filosofia.
Chama a atenção que o mesmo tipo de capilaridade que o debate ganhou na mídia, não está refletida na produção universitária, técnica-científica. É praxe, especialmente nas ciências humanas, que as tendências sociais se reflitam nas bancas acadêmicas. Exemplo disso é identificado na mudança da temática dominantes em linhas de pesquisa, motes de simpósios e congressos que mudaram em sintonia à recente transição no perfil de movimentos sociais, antes agitados pelas temáticas socioeconômicos e agora focados no identitarismo cultural. É ao mesmo tempo instigante e inquietante perceber o descompasso gigantesco quando se verifica o crescente interesse pela hipótese Deus e o quase absoluto silêncio da academia. Ou seja, há uma perceptível assimetria do debate estabelecido fora da academia com a produção dentro da academia. O dilema se acentua quando percebe-se que praticamente 10 em 10 teses (com a óbvia e honrosa exceção dos departamentos de teologia), quando abordam o assunto, o fazem pelo viés da defesa do apartamento, muitas vezes recorrendo à interpretações preconceituosas e com pouco rigor metódico.
Não temos estatística disponível para quantificar a “sensação” de desprezo acima descrita, a expressão de sua veracidade está na lamentação hegemônica entre os aderentes das organizações que buscam o diálogo entre fé e ciência, rotulados vexatoriamente de “pseudocientistas” e no fato de ser público e notório a desqualificação sistemática de teses que ousam pôr à prova os limites das muralhas que seguem erguidas.
Percebemos que é uma questão de princípio rejeitar a hipótese Deus, ainda que não estejamos falando de qualquer crença em particular sobre quem seja o criador e tomando as devidas precauções para não incorrer no erro de professar uma religião específica.
Não seria crível indagar por que se deve necessariamente reputar os temas da origem e do sentido “do tudo o que há” a uma longínqua possibilidade, condicionados a novas descobertas que não sabemos se existem, via uma longa cadeia de investigações ainda por serem realizadas? Por que é preferível deixar o tema em aberto ao invés de abrir espaço para outras possibilidades ou simplesmente admitir a pergunta: pode ter sido Deus?
(Continua.)