Fã de açaí e de ervilha, Popole manda recado aos demais refugiados: ‘Acreditem em vocês

Qualquer problema pessoal fica pequeno depois de uma conversa com Popole Misenga. O judoca, natural do Congo, que vive no Brasil desde 2013, foi anunciado pelo Comitê Olímpico Internacional, no dia 08.06, como um dos 29 integrantes do Time de Refugiados que disputará Tóquio 2020. Ele é o único atleta residente no Brasil. Desde que pediu asilo após competir o Mundial do Rio, Popole se reconstruiu: encontrou apoio, se casou, teve filhos e vai para a segunda edição de Jogos Olímpicos.

“Tem pessoas que chegam e falam: você é refugiado. Querem me ofender. Mas isso não me magoa porque sei o porquê de eu estar aqui. Estou aqui hoje fazendo o esporte que sempre gostei, disputei os Jogos Olímpicos aqui no Rio, algo que não sonhava, fui convocado de novo e estarei em Tóquio”, disse Misenga, em entrevista ao Canal Olímpico do Brasil.

“Muitos acham que os refugiados são apenas crianças magras, passando fome ou doentes. Existem brasileiros que também passam fome, mas quando falam da África, as pessoas se chocam. Quando você sai do seu país fugindo e vai para o país do outro, você está ilegal. Então, também é refugiado”, explicou o atleta.

Popole Misenga é um dos poucos atletas do Time de Refugiados que participaram dos Jogos Olímpicos do Rio, quando a equipe fez a estreia levando uma importante mensagem de solidariedade. Agora, aos 29 anos, Popole volta ao palco olímpico se sentindo um pouco mais brasileiro.

“Da música, gosto mais de samba. Na comida, adoro açaí, fruta que não posso ver que me dá vontade de comer. Mas gosto muito também de sopa de ervilha. Quando está chovendo ou frio, já aviso minha mulher que vou querer um caldo. Sabe por quê? Quando eu estava no abrigo para crianças resgatadas, o pessoal da ONU sempre dava ervilha pra comermos. A gente comia direto isso com arroz. É uma lembrança boa”, afirmou Popole.

“Os apoios do Comitê Olímpico Internacional (através do Solidariedade Olímpica, operado pelo COB no Brasil) e da Federação Internacional de Judô mudaram minha vida, me deram força. A Olimpíada do Rio entrou para a História, meu nome está no livro. Meus descendentes vão abrir, ver meu nome e poderão dizer: meu pai, meu avô, meu bisavô esteve em uma Olimpíada. Não é qualquer atleta que disputa duas edições olímpicas. Estou feliz e orgulhoso”, celebrou Popole.

O judoca é natural de Bukavu, fronteira com Ruanda, uma área gravemente afetada pela Segunda Guerra do Congo, que matou 6 milhões de pessoas e deixou 500 mil refugiados. Depois que sua mãe foi assassinada, ele fugiu para uma floresta e vagou por uma semana, antes de ser levado de barco para a capital Kinshasa, onde começou a praticar judô num centro para crianças resgatadas.

“Comecei a fazer judô por brincadeira. Depois, não tinha dinheiro para a passagem, lutava para ir treinar. Não imaginava que um dia seria atleta conhecido. Já fui quatro vezes a Tóquio: competir e treinar na casa do Judô. Fui também para gravar um filme que vai passar durante os Jogos Olímpicos. Fiquei emocionado por encontrar pessoas que eu via quando era criança e imaginava que eram incríveis. Foi um sonho! Eu pensava: sou muito inferior, mas não sou”, contou o judoca.

Em 2010, Popole foi bronze no Campeonato Africano Sub-20. Em 2013, depois da participação no Mundial de Judô do Rio, pediu asilo no Brasil. Ele acusou os treinadores da seleção de prender os judocas no hotel e de usar a verba dos atletas para fazer turismo no Rio. Eles também afirmaram que, na África, os técnicos os deixavam com fome e os trancavam em gaiolas quando não tinham um bom desempenho nas competições.

Depois de desertar, ele e outra companheira de seleção foram levados por um angolano para Brás de Pina, bairro de grande concentração de imigrantes africanos no subúrbio do Rio de Janeiro. Em setembro de 2014, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) concedeu oficialmente o status de refugiado a Popole.

A Caritas, órgão da Arquidiocese do Rio de Janeiro que desenvolve um trabalho sistematizado de atendimento a refugiados no Brasil, intermediou o contato com Flávio Canto, criador do Instituto Reação, que acolheu Misenga. Geraldo Bernardes, treinador que formou, além de Canto, a campeã olímpica Rafaela Silva, é, até hoje, responsável pelos treinamentos do judoca.

“Quando eu ia na Caritas, ficava perturbando um fotógrafo que tinha lá, o Diego, perguntando se ele não conhecia ninguém do judô, falando que eu era atleta, que judô era a coisa que eu mais sabia fazer na vida. Eu me tornei um cara chato, cobrava dele uma coisa que não tinha nada a ver com ele. Imagina: uma pessoa que não tem nada a ver com o judô e chega alguém e te pergunta todo dia se não pode arrumar uma academia para você treinar? Conheci o Flávio Canto, que me apresentou ao Geraldo e falou: Geraldo, deixo esse filho pra você cuidar. Não sabia muito o português e chamava o Geraldo de ‘minha’ pai (risos). E estou aqui até hoje, feliz”, relembrou o judoca congolês.

De acordo com a quarta edição da publicação Refúgio em Números, divulgada em julho de 2019, o Brasil reconheceu oficialmente em 2018 um total de 1.086 refugiados de diversas nacionalidades. Com isso, o país atingiu a marca de 11.231 refugiados oficialmente reconhecidos pelo Estado. Desse total, os sírios representam 36% da população refugiada com registro ativo no Brasil, seguidos pelos congoleses, com 15%, e angolanos, com 9%. O número de pedidos de refúgio, contudo, é bem maior.

“Os refugiados que conheci não tinham muitos sonhos. Eu ainda quero ir a Paris 2024. Estou dedicado ao esporte. Não bebo, não fumo, vivo treinando, todos os dias. Quando você entende os princípios do que é ser atleta, vai mais longe. Então, sempre que pensar em mim, acredite. Mesmo com tudo o que passei, consegui chegar. Tem que escutar, observar, ter paciência, aguentar, resistir. Eu era nada, mas hoje não sou mais que ninguém. Não é porque você é refugiado que você não pode fazer uma coisa. Acredite em si mesmo”, finalizou Popole.

Fonte: Comitê Olímpico do Brasil (COB)




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