“Cada ordem estabelecida tende a produzir a naturalização de sua própria arbitrariedade”, Pierre Bourdieu

Acordei nessa quinta-feira, 22, bem cedo e, contrariando meus hábitos, resolvi dar uma olhada nas mensagens das redes sociais. Definitivamente, não foi uma boa ideia. Passados alguns minutos em frente à tela, a surpresa do dia enturvava a minha visão: o Ministro da Educação, Excelentíssimo Sr. Mendonça Filho, manifestava publicamente a intenção de averiguar a legalidade (isto mesmo, a legalidade) da oferta de uma disciplina eletiva do curso de graduação em Ciências Políticas da Universidade de Brasília (UnB).

Bem, em época de pós-verdade, de fatos alternativos, de terraplanismo e outros disparates, tal notícia deveria apenas engordar a minha já cevada “pasta” dos absurdos e, depois, vida que segue. Porém, foi difícil assim proceder. A disciplina em questão foi denominada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, e o colega, agora “investigado”, é o professor Luis Felipe Miguel, titular da área e pesquisador reconhecido entre os pares.

O ministro não deixou por menos. De imediato, bradou a participação da Advocacia Geral da União (AGU), do Tribunal de Contas da União (TCU), da Controladoria Geral da União (CGU) e do Ministério Público Federal (MPF). A alegação é de improbidade administrativa por parte do professor que estaria, na ótica do ministério, se apropriando do bem público para a promoção de pensamentos político-partidários.

Para o leitor atento, pode parecer inacreditável que um ministério cuja pasta se encontra eivada de maiúsculos problemas possa contar com tempo disponível para xeretar o conteúdo das ementas das disciplinas dos cursos de graduação das universidades federais. Em minha opinião, quem considera que esse episódio foi mais uma trapalhada de um governo atrapalhado pode estar muito equivocado. O recado foi claro. A partir de agora, a vigilância governamental sobre as universidades (e, sublinha-se, não estou me referindo somente ao governo atual) poderá ir muito além dos limites legal e tradicionalmente a ela reservados. No ambiente democrático dos últimos 32 anos, os órgãos de controle governamentais conservaram sua atuação sobre a gestão dos orçamentos, os procedimentos administrativos e a qualidade da oferta dos cursos e das atividades de pesquisa e extensão. A novidade agora é o caráter invasivo do controle sobre o conteúdo das aulas.

Pode parecer coisa menor, mas não é. A despeito de qualquer teoria da conspiração, semelhante manifestação ministerial acontece na esteira de um rosário de desrespeitos à frágil autonomia universitária. Muito recentemente, assistiu-se no interior dos campi o que já era observado fora deles. Sob o pretexto de combater a corrupção, uma espécie de movimento tenentista togado que pretende promover uma reforma moral do País sem projeto de País não economizou spot lights, quando oportunidades foram apresentadas para a realização de conduções coercitivas abusivas de membros das administrações superiores, prisões arbitrárias de professores, operações policiais espetacularizadas nos campi e violações flagrantes das normas básicas dos procedimentos investigativos com o propósito ineludível de intimidação da comunidade universitária. Até o momento, a reação das universidades tem sido decomposta, pontual e frágil, destacando-se a denúncia dos abusos e reafirmando os valores de autonomia e liberdade de pensamento.

A situação presente revela-se ainda mais preocupante, pois parece admitir na prática a consumação das pretensões da patética proposta do movimento “escola sem partido”, dispensando, ao contrário deste, a aprovação de qualquer legislação específica nesse sentido. Bastando, para tanto, a disposição de um ministro de Estado, cujo governo se orgulha de seu déficit de aprovação popular. Assim, caso não haja uma resposta politicamente orientada no sentido da afirmação de sua autonomia de pensamento e produção de conhecimento, as “universidades” poderão deixar em breve de ser merecedoras de tal denominação.

 

Eduardo Magrone – Professor Associado da Universidade Federal de Juiz de Fora. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre em Educação pela mesma instituição, doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos).

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