Quando eu disse à escritora Nélida Piñon, autora do famoso “A república dos sonhos”, que estava de viagem a Portugal, ela, de forma veemente, recomendou: “Não deixe de visitar a Fundação José Saramago. Há muito o que aprender com as obras do único escritor em língua portuguesa que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura”.
De fato, a acadêmica brasileira tinha razão. Primeiro porque a Casa dos Bicos, em Alfama, é um notável centro cultural, que reúne farto material sobre a vida e a obra do autor de “Memorial do Convento”. Depois, porque anota certas coincidências que mexem com a nossa imaginação, como a valorização da palavra “sonho”.
No interior da casa de quatro andares, subindo a pé sua linda escadaria, pude registrar certos pensamentos de Saramago: “Teve bons mestres nas longas horas noturnas que passou em bibliotecas públicas lendo ao acaso, com o mesmo assombro criador do navegante, que vai inventando cada lugar que descobre”.
Assim se revela o seu apreço pelo que representam os livros na sua formação e o papel das bibliotecas, especialmente as públicas, na vida de quem não teve a fortuna de frequentar universidades ou escolas superiores, mas chegou ao topo da carreira de escritor. Revelava, por isso mesmo, uma clara “humildade orgulhosa”.
Saramago foi um grande amigo do Brasil e particularmente do nosso acadêmico Jorge Amado. Costumava dizer que um dos dois um dia ganharia a láurea da Academia Sueca (1998). Numa visita ao Rio de Janeiro, em companhia da sua amada Pilar Del Rio, hoje responsável pela direção da Casa dos Bicos, aceitou o convite para um jantar no Hotel Glória, o que foi um prazer imenso. Conversamos horas a fio sobre o destino das literaturas dos nossos povos respectivos e a necessidade de um maior intercâmbio entre o Brasil e Portugal, tese que reacendi agora na audiência que me foi concedida em Lisboa pelo presidente Artur Anselmo, da Academia das Ciências de Lisboa.
Voltemos a José Saramago, hoje apreciado em 40 línguas. Para ele, a escrita, mais do que uma atividade meramente ficcional, é ditada pela necessidade de indagar dos destinos da humanidade, das paixões e dos furores que a determinam. Faz uma escolha fundamental: “Em todas as minhas obras, sempre apontei na mulher a componente salvadora de uma humanidade hoje mais do que nunca à deriva”.
Depois, recusa-se a admitir ser um romancista histórico: “Há uma definição que, de certa maneira, marcou o meu percurso como escritor, sobretudo como romancista e que, tenho de confessar, recebo com uma certa impaciência. Trata-se do rótulo gasto de que sou um romancista histórico…. Vejo a humanidade como se fosse o mar… que é o tempo”.
Com essas características, Saramago venceu o Prêmio Nobel. Ganhou 1 milhão de dólares e aplicou parte do dinheiro na criação da Fundação que leva o seu nome – e hoje está em pleno funcionamento, num local nobre de Lisboa. À frente da Casa dos Bicos, foi plantada uma oliveira, trazida da terra natal do autor (Azinhaga). Ali foram depositadas as suas cinzas e colocada a frase por ele escolhida: “Mas não subiu às estrelas se à terra pertencia!”, de grande significado.