Por que não Deus? Investigando as razões ocultas por trás da rejeição da Hipótese Deus pela academia – Parte 19

Considerando o que foi tratado até aqui, passamos ao seu efeito mais revelador: a evidente incapacidade do campo acadêmico comprometido com o seu paradigma imanentista oferecer à sociedade uma resposta à indagação de qual seja a razão última e o sentido de tudo o que há.

O sociólogo acredita que a reflexão teórica começa e termina na sociedade, enquanto o economista acredita na economia, ou o biólogo na biologia e assim sucessivamente. A consequência é que ninguém, absolutamente ninguém, convence o colega de outra área quanto à sua certeza.

Herman Dooyeweerd propõe um raciocínio ao mesmo tempo instigante e revelador: todas as teorias admitidas pelo paradigma imanentista partem da premissa kantiana de que a razão teórica é a única válida e que não há outra realidade se não a imanência material/natural.  Ora, se é de fato assim, porque cada ciência especial apresenta uma explicação diferente para o sentido da realidade? Se os cientistas são todos igualmente racionais, metódicos e se seus pressupostos estão corretos, como explicar a Torre da Babel de desentendimento em meio a uma miríade quase infinita de teorias divergentes, todas dotadas da idêntica pretensão de serem definitivas na explicação dos vetores dos acontecimentos captados pelos nossos sentidos?

Cada ciência especial prioriza o seu campo de reflexão trazendo um aspecto específico da realidade imanente ao centro, sobrepondo-o aos outros.  Por exemplo, para o economista, a economia determina a sociedade; para o sociólogo, a sociedade determina a política; para o cientista político, as instituições e atores determinam o curso da história; para os historiadores, a história é a força que molda a percepção dos indivíduos; para os biólogos, o organismo humano determina o comportamento; para os psicólogos, a mente se sobrepõe à biologia na determinação da identidade; e assim sucessivamente em uma cadeia infinita de discordâncias.  

Mais dramático ainda é o fato de que dentro de cada ciência especial figuram diversas teorias que matizam as possibilidades de caminhos explicativos, afastando-se uma das outras e todas igualmente conspirando pela difusão de um sem número de percepções possíveis da realidade. Por exemplo, na sociologia, os marxistas enfatizam o coletivo na determinação do indivíduo, já os weberianos acreditam que o indivíduo determina a sociedade; na historiografia, a visão tradicional reputa os eventos às decisões de grandes líderes e estrategistas, já a escola recente da história social, atribui maior importância às classes humildes. Se seguirmos detalhando, certamente o leitor ficaria enfadado com esse raciocínio que não tem fim.

É justamente a falta de uma origem que transcenda os campos de reflexão calçados na imanência que engendram tamanha dissonância. Ou seja, o fato do motivo base condicionar a reflexão teórica à natureza e a liberdade alicerça um paradigma necessariamente imanentista que, por sua vez, não admite explicação que não se afaste das ocorrências naturais/materiais, logo, o campo científico está preso ao dilema de estabelecer qual dentre tantos aspectos da realidade se sobrepõe aos outros e determina todos os demais. Consequentemente, é óbvio que cada cientista dedicado a compreender um aspecto da realidade é levado a vislumbrar que o seu ponto de vista determina ou condiciona os demais, daí todos acreditam ter a razão, revelando o fato de que ninguém consegue escrutinar a verdade.

Dooyeweerd caracteriza diversos “ismos”, representando reducionismos epistemológicos que limitam o campo acadêmico à tecer uma compreensão verdadeiramente válida acerca do ser humano e da própria realidade. O economicismo, por exemplo, reduz a complexidade da vida social e humana à esfera econômica. Segundo Dooyeweerd, essa perspectiva ignora as múltiplas dimensões e expressões da existência humana, como a cultural, a social e a espiritual, tratando a atividade econômica como a única força motriz da sociedade. Essa visão unidimensional não apenas desconsidera a riqueza de experiências humanas, mas também promove uma compreensão estreita das relações sociais, muitas vezes levando a uma desvalorização de aspectos essenciais da vida comunitária.

O historicismo, para ficar em um segundo exemplo, é a tendência de interpretar a realidade exclusivamente através da lente da história. Para Dooyeweerd, essa abordagem pode levar à crença de que as normas e valores são meramente produtos de contextos históricos específicos, desconsiderando a possibilidade de verdades universais. O historicismo pode vir a relativizar a moralidade e a ética, sugerindo que as ações e crenças devem ser compreendidas apenas dentro de seus contextos históricos, resultando em uma falta de critérios objetivos para o julgamento ético.

Constatamos, portanto, que o imanentismo opera como um bloqueio mental, que impede grandes intelectuais de enxergarem a obviedade de que o mundo físico não é o único e que a razão última de tudo o que há não pode ser apreendida em nenhuma de suas partes, mas na sua origem absoluta que não se subsume a nada encontrado na imanência.

O próprio ato de pensar teoricamente origina um tipo de  “ismo”. O cientificismo é uma perspectiva limitadora pois supõe que a única forma válida de conhecimento é aquela produzida pela ciência empírica. Essa visão tende a deslegitimar outras formas de saber, como a filosofia, a arte, a religião ou a experiência subjetiva em geral. Sua tendência é desconsiderar as dimensões não quantificáveis da vida humana, como os aspectos da existência que não podem ser plenamente capturados por métodos científicos.

A redução da complexidade aos ismos deriva do compromisso com pressupostos axiológicos, simples assim! Concluímos, portanto, que um efeito e, ao mesmo tempo, uma  enorme evidência do empobrecimento teórico ocasionado pela correlação motivo-base natureza e liberdade, paradigma imanentista e campo acadêmico eivado de interesses com os seus pressupostos e não com a busca pela verdade é o completo desencontro das teorias que pretendem explicar a origem e o sentido da realidade.

Sendo o campo acadêmico o espaço social sancionado para oferecer à sociedade respostas para seus dilemas reflexivos, inclusive os existenciais, e se ele não os oferece, duas consequências derivativas são verificadas, dois outros efeitos práticos são constatados, um próprio da reflexão teórica e outros na cultura: o relativismo e a pós-verdade.

Tais temas serão abordados no artigo seguinte. Por enquanto, basta a constatação de que os resultados obtidos até aqui no tipo de ciência que se desenvolve assentada nos axiomas em voga, a despeito dos avanços técnicos, não é capaz de enfrentar adequadamente as perguntas existenciais fundamentais: de onde viemos, por que estamos aqui e daí derivar a pergunta instrumentalmente mais relevante: para onde leva o caminho que estamos percorrendo?  




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