Por que não Deus? Investigando as razões ocultas por trás da rejeição da Hipótese Deus pela academia – Parte 10

Agora que já estabelecemos as bases teóricas (veja os artigos anteriores), podemos começar a penetrar no problema que guia a presente série.

A preponderância do campo acadêmico na produção do conhecimento legítimo é um fato social. Da mesma maneira, o veto da ‘hipótese Deus’ como alternativa explicativa da origem e sentido da realidade é outro fato social.

Não existe óbice senão convencional para que a ideia de Deus não seja seriamente aceita como uma entre outras possibilidades em debate no interior do espaço legítimo de produção do conhecimento. Veja que não se faz referência à imposição da hipótese, mas sua submissão consequente ao debate. Como contingências, o campo científico e o veto à hipótese Deus, ambos devem ser investigados como tais, ou seja, como fatos sociais.

Para encontrar as razões dos fatos sociais não podemos nos ater tão somente às aparências nem nos deter na superficialidade, temos que colocar em questão absolutamente tudo, especialmente suas próprias justificativas.2

Esta é a atitude verdadeiramente crítica: aquela capaz de romper com a ilusio, conduzindo a investigação que pretende ser considerada científica no sentido das razões ocultas. Não há embaraço algum em problematizar o fato de que o campo científico está longe de ser isento e de que a ‘hipótese Deus’ hoje sofre impedimentos concretos nada científicos ou racionais.

Bourdieu está correto ao afirmar peremptoriamente que os seres humanos tendem a naturalizar aquilo que tem origem na dinâmica social. Ou seja, de acreditar que os fatos sociais são fatos da natureza e, portanto, prévios e imutáveis.

Ele identifica e elenca extensivamente ao longo de sua obra acontecimentos que são tidos pela sociedade como sendo realidades naturais mas que são, na verdade, resultantes de processos complexos de socialização.

A reflexão crítica deve explicar livre de preconceitos, investigar para então determinar as razões dos fenômenos, ou seja, analisar os pormenores para então demonstrar os fundamentos daquilo que se tende a acreditar ser ‘um dado inviolável da natureza’.

Isso não quer dizer que tudo é social. Neste ponto nos afastamos brutalmente de Bourdieu. Assim como grandes sumidades de outras áreas do saber, o francês incorre no problema comum do ‘ismo’, ou seja, a tendência de reduzir ‘o todo’ pela ‘parte’ ou a atribuir como causa uma consequência.

Este aspecto é revelador quanto à própria limitação da ciência moderna: como seu paradigma materialista/naturalista ou o contraponto relativista não encontram a razão última de tudo o que há, os sociólogos acreditam que a reflexão teórica começa e termina na sociedade, enquanto o economista acredita na economia, ou o biólogo na biologia e assim sucessivamente. Este ponto ficará mais claro no decorrer da exposição dos próximos artigos da série.

Retomando o aspecto central deste artigo:  no caso da prática científica, devemos considerá-la um fato social. Isso porque não é um dado prévio e pertencente a qualquer outra natureza senão à contingência humana. Ela possui uma geografia e uma história, pode ser localizada no espaço e determinada no tempo. Sendo assim, existe em certos contextos e inexiste em outros. Vige na nossa sociedade e não em todas as sociedades. É como fato social, com tempo e espaço definidos, que pode e deve ser submetida à crítica a fim de buscar e encontrar seu delineamento.

Não é à toa que a nossa sociedade celebra o campo científico como sendo neutro de contaminações não científicas e de que a produção científica é comprometida tão somente com a busca pela verdade. Naturalizar tais ‘princípios’ é vital para a obtenção da legitimidade do campo e, consequentemente, de seus agentes dominantes.

Observando a dinâmica interna aos campos, os seus participantes agem de maneira unificada para assegurar a legitimidade do campo, enquanto os dominantes têm a necessidade de naturalizar os processos que mantém a dominação.

Os agentes não reproduzem tal dinâmica conscientemente, mas através de um processo de ajustes de preferências e ações, no qual cada qual exerce suas prerrogativas para alcançar o próprio interesse de legitimar seu próprio espaço de socialização e de conservar sua destacada posição. Dessa forma, agentes individuais se veem enlaçados numa trama coletiva e cooperam inconscientemente para a manutenção do prestígio do campo frente ao resto da sociedade e cristalizam os processos internos de dominação.

Consequentemente, compreender os processos aparentemente naturais como fatos sociais é determinante para desmascarar narrativas e expor dinâmicas de dominação.

O primeiro passo para desvendar o mistério das raízes ocultas do fazer ciência consiste em delimitar aquilo que se pode chamar campo científico o que envolve circunscrever o habitus incrustado nos agentes que dele participam.

Remontando à disjunção grega entre doxa e episteme, a academia apresenta-se como um espaço de produção de conhecimento isento da contaminação do senso comum, garantido pela austeridade metódica e sustentado pela reflexão rigorosamente racional. Nada mais distante da verdade!

A academia constitui um espaço de socialização e hierarquização, de dominação e lutas tal como ocorre em qualquer outro campo. A produção acadêmica é a síntese da busca pelo conhecimento associado às condições em que ocorre tal busca. Ela envolve um habitus que se assenta sobre a illusio de se desconsiderar que o pensamento teórico tal como qualquer manifestação mental só pode ser devidamente apreciado segundo determinados pressupostos axiomáticos estabelecidos pelo paradigma e cujas raízes se encontram em motivos religiosos ainda mais profundos.

Para compreender este ponto, devemos destrinchar o pensamento de Kant que se baseia no motivo base natureza e liberdade e lança uma ideia que cativou a academia de que o pensamento teórico é o pensamento em si engendrando o mito da neutralidade da reflexão científico como demonstraremos nos próximos artigos.

 




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