Quem atravessa o Largo de Santa Rita, no centro da cidade do Rio de Janeiro, depara-se com uma das heranças da escravidão de africanos no Brasil. Ali, a sociedade civil e os historiadores apontam o que pode ser um dos primeiros cemitérios para africanos recém-chegados ao país, os chamados pretos novos.
Os registros indicam que os africanos mortos nos tumbeiros ou ao chegarem eram enterrados em frente à Igreja de Santa Rita, atual Largo de Santa Rita, entre 1722 e 1769. O local ficava perto do mercado de escravos da Praça XV e distante do Largo da Carioca, onde ficava a nobreza. Os corpos teriam sido descartados em covas rasas, muitos, cobertos de doenças, como as bexigas de varíola, provocadas pelas péssimas condições do translado. A igreja serviria como local de triagem dos negros, antes de serem vendidos no Cais do Valongo, na zona portuária do Rio.
Essa é uma das versões que pode vir à tona com as escavações arqueológicas no local, que antecedem a instalação do último trecho do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), ligando a Central do Brasil à Avenida Marechal Floriano. As obras estão previstas para começar no próximo mês e aguardam a autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O local foi interditado há uma semana e a igreja está sendo escorada para não sofrer danos.
Ainda não está claro, no entanto, como as peças arqueológicas e o próprio sítio serão tratados, questões que preocupam organizações do movimento negro. “Entendemos que todo o local é um espaço de referência para nossa ancestralidade. Passando por cima, ou passando por baixo [o VLT], escavando ou não escavando, é uma área sensível para nós e queremos, de cara, a preservação”, disse o presidente do Conselho Estadual dos Direitos do Negro (Cedine), Luiz Eduardo Oliveira Negrogun. Na última quinta-feira, 28 de junho, ele visitou o canteiro de obras a convite do Iphan, acompanhado de engenheiros do VLT e de uma equipe de arqueologia.
APAGAMENTO DA MEMÓRIA
Os ativistas reclamam que a prefeitura, ao estabelecer o trajeto do VLT, e o Iphan, ao autorizar as obras, não levou em consideração o fato de o local nem sequer ser sinalizado como marco de um crime contra a humanidade. “Ao pular esta etapa, a sociedade pode repetir o erro de apagar a memória da escravidão”, alertou Negrogun.
Essa é a mesma preocupação do jornalista Rubem Confete, profundo conhecedor dos marcos afrobrasileiros no Rio. “O objetivo deles é fazer os trilhos para o VLT, não estão interessados pela história. No Cais do Valongo, tiraram quatro ou cinco contêineres de utensílios, peças religiosas, e está tudo escondido, não temos acesso. Esse é um problema. O segundo é: se a arqueologia for realmente trabalhar, vai atrasar a obra. É isso o que querem?”, questiona. A previsão é que o novo trecho do VLT seja entregue até o fim de 2018.
Confete, no entanto, acredita que as escavações no Largo de Santa Rita encontrem um cemitério comum, onde eram enterrados membros da irmandade negra da Igreja de Santa Rita. “Era uma irmandade onde o negro predominava. Era um local de reunião. Além de frequentarem as missas, os africanos e seus descendentes reconstruíram ali laços de amizade”, explicou. Por ser mais afastada do centro, Santa Rita teria sido uma das primeiras igrejas onde essa convivência era possível, reunindo africanos libertos, lideranças religiosas e escravizados.
TESOUROS
Segundo projeto apresentado pela consultoria Artefato ao Iphan e disponível na internet, as escavações arqueológicas, que fazem parte das contrapartidas do VLT, pretendem identificar e delimitar o cemitério de pretos novos, conservando o máximo possível de peças no local. Conforme o documento, que corrobora a tese de que o cemitério era de pretos novos, todo o material retirado será enviado para a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
A coordenadora científica das escavações, a professora pós-doutora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maria Dulce Gaspar, não foi autorizada pelo consórcio a dar entrevistas. No entanto, na visita ao canteiro de obras, quinta-feira, 28 de junho, explicou à comissão de ativistas que tudo que há sobre o cemitério de pretos novos são hipóteses.
“Há muita coisa remexida. Não penso em nada mágico, que vamos abrir e encontrar tudo organizado”, declarou. “Mas se nós fizermos uma demarcação [do cemitério] e eu, como arqueóloga, não posso ir além disso, o que tenho para dar, desculpem-me a presunção, é precioso: saber onde começa e onde termina e em quais condições está”, declarou Maria Dulce.
As primeiras sondagens arqueológicas resgataram faiança (louça de barro coberta por esmalte) fina, portuguesa, porcelana, fragmentos de cachimbo de cerâmica e de caulim, além de uma série de fragmentos de ossos humanos como crânio, dentes e tíbia.
O arquiteto e urbanista João Nara Júnior concorda que definir os limites do cemitério, após uma série de intervenções urbanas na região será um grande passo. Ele fez mestrado sobre a Igreja de Santa Rita e pesquisa o cemitério do largo para a tese de doutorado na UFRJ. “Essa questão da exclusividade dos enterros [só de pretos novos], temos que relativizar. Teoricamente, eles poderiam ser enterrados em qualquer lugar. Mas, de fato, havia pretos novos ali”, disse.
Segundo Nara Júnior, há referências nos autos da Câmara de Vereadores do Rio sobre o sepultamento de pretos novos no local. Ele cita como uma das evidências mais emblemáticas a anotação de uma pessoa queixando-se da indignidade de enterrar pessoas em plena rua. “Tinha até um cruzeiro no local para que as pessoas orassem por essas almas”, ressaltou.
PRESERVAÇÃO
Procurado para esclarecer o que será feito no sítio, o Iphan respondeu que não se pronunciará antes do resultado conclusivo da arqueologia. O órgão levantou dúvidas sobre a existência de cemitério de pretos novos ou de escravizados, apesar das referências apontadas pelos especialistas.
A prefeitura do Rio informou que não pode antecipar nenhuma medida de preservação ou de sinalização. Por meio da assessoria, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto explicou que qualquer ação depende das descobertas e das recomendações a serem feitas pelo Iphan, mas ressaltou que todas as sugestões serão seguidas.
Todas as escavações são feitas no Porto Maravilha, região formada por uma série de sítios históricos e locais de referências que compõem o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana. Além do Cais do Valongo, registrado como Patrimônio da Humanidade em 2017, a região abriga o Instituto dos Pretos Novos, que preserva descobertas do cemitério de pretos novos do Valongo. O local foi descoberto na década de 1990, após moradores tentarem reformar a própria casa e se depararem com ossos humanos.
Fonte: Agência Brasil