“O Comitê é um mecanismo da política nacional, implantado em muitos municípios brasileiros, que vai possibilitar construir essa cultura institucional que é pensar a partir da proteção da rede de atenção como um todo. Assistência, Habitação, Saúde, Educação, Direitos Humanos, entre outras, são políticas importantes e nenhuma é melhor que a outra.”
Em sua palestra, na última terça-feira, dia 31, para os profissionais da Secretaria de Assistência Social (SAS), com mediação da subsecretária de Proteção e Promoção Social, Valéria Gonelli, Luciano Freitas, traçou as raízes sociohistóricas de resgate do atendimento à população em situação de rua no Brasil. A secretária de Assistência Social, Malu Salim, considerou os estudos e experiências do pesquisador muito instigante e, ao mesmo tempo, um enorme desafio para SAS. “A gente já sabia que tinha de reorganizar o nosso serviço assistencial, agora, tenho certeza disso. Além de organizar é necessário dar atenção ao nosso processo de trabalho. Não adianta mudar os serviços se não se organiza, não se refaz e não vê a população em situação de rua, historicamente.”
A compreensão do fenômeno social da população em situação de rua passa pelo viés de como o país tratou e trata a pobreza urbana. “A presença de pobres no contexto urbano das cidades promoveu, ao longo dos séculos, imagens e representações e uma multiplicidade de discursos sobre esse fenômeno que arrebate até hoje as formas explicativas para compreender essas questões no Brasil”.
Momentos sócio-históricos
A trajetória sócio-histórica, segundo Luciano Freitas, deve ser entendida a partir de cinco momentos: de 1500 ao início do Século XX; 1930 à década de 1970; anos 1980 ao início dos anos 2000; 2004 a 2011; 2012 a 2019. No primeiro momento, parte-se do princípio de que a invasão das terras americanas brasileiras começou com a expansão comercial europeia. Os mecanismos adotados por Portugal, a partir do século 16, articulados com o processo de povoamento da terra, passaram por um complexo sistema de banimento. Isso significou expulsar os sujeitos indesejados da metrópole portuguesa para as suas Colônias por meio do degredo, afastamento voluntário ou compulsório de um contexto social.
O pesquisador explica a política adotada pela Colônia Portuguesa, ressaltando que, ao mesmo tempo, que ocupava as terras, visibilizava-se a desinfestação do reino, livrando-se dos indivíduos indesejáveis, classificando-os como responsáveis pelos conflitos sociais na metrópole portuguesa. “Isso teve um impacto muito grande na formação social brasileira, porque essa massa de homens e mulheres pobres e livres, condenados pelo degredo, foram enviados ao Brasil para serem responsáveis pela própria sobrevivência”.
Dessa forma, esse segmento social classificado como despossuído, e, formalmente livre, de acordo com Luciano Freitas, estava fora das relações de trabalho instituídas no período colonial, onde estava em operação a mão-de-obra escrava de grandes latifúndios. Essa era a estrutura social de produção e essa população estava fora disso e tinha como única opção de sobrevivência nesse cenário desempenhar funções não enquadradas e totalmente dispensáveis à medida que não participava do sistema de produção essencial.
Essa forma de organização social relegou a uma massa de homens e mulheres livres a um papel de nexos nas relações de trabalho, instituindo-lhes uma representação da inaptidão para o trabalho como recurso ideológico, utilizado desde o período colonial. Após 1889, ajunta-se a esse segmento social os escravos que foram relegados à própria sorte. “Então, essa massa da população, no fim do século XIX, reforçou uma representação sobre esse segmento social como indolentes, indisciplinados e todos compreendidos na vadiagem. E o ócio dessa população é caracterizado a partir da visão ideológica dos cafeicultores paulistas. Segundo essa elite, constituía-se a gênese dos males sociais”.
“Nesse primeiro período, a principal instituição voltada para atenção à pobreza, colonial e imperial, por exemplo em São Paulo, foi a Irmandade de Misericórdia, que veio transplantada do modelo português das confrarias, cujo objetivo voltava-se para o recolhimento das contribuições dos ricos e distribuir em forma de esmola aos pobres. Mediante a esse processo de classificação em relação à pobreza urbana, esses pobres e livres recorriam às ações assistenciais. Em SP, foi preciso muita rigidez nos critérios para acesso às esmolas da Irmandade, pois o que significava ajudar um determinado tipo de pobre seria apoiar um vadio”.
Esses são os primeiros elementos dessa população em situação de rua, que é considerada como “vagabundos”. Assim, constrói-se uma imagem de representação desse segmento social que rebate até a atualidade como modelo brasileiro para entender a população em situação de rua como um recurso ideológico para criminalizá-la.
Nesse contexto, a emergência de um saber policial aparece com a finalidade de controlar os comportamentos de modo de vida encontrados nesse espaço público. Principalmente, o que era chamado de condutas impróprias: mendicância, vadiagem, prostituição, que eram compreendidas como uma questão de segurança pública e prescritas como crime de contravenção penal, tanto no código de 1830 como de 1890.
Só em 2009, a mendicância deixa de ser uma contravenção penal. Esse crime era descrito de forma genérica, cerceados de valores morais, a ideia de vício, pudor, do ócio. “A conduta mais objetiva que se colocava toda essa perspectiva moral era vista na questão da mendicância. Para responder à mendicância nas cidades as velhas práticas do degredo, enviar para outras cidades essas pessoas ou prendê-las nas delegacias.”
O segundo momento de identificação da trajetória da população em situação de rua, de 1930 aos anos 1970, introduz uma aliança estratégica entre o poder policial e as organizações sociais e a própria igreja. E a resposta institucional para esse segmento da sociedade foi a criação das delegacias de mendicâncias, que realizavam suas capturas nas rondas visando coibir as “pessoas indesejadas” nos espaços públicos. Essas pessoas, consideradas “vagabundas’ e “indigentes”, eram encaminhados para “albergues noturnos” e até enviados para outras cidades.
“A política de passar as pessoas para frente, para outro município, repete aquele modelo do degredo e se revela como um “modus operandi” até hoje. Esse modelo vai trabalhar com recolhimento compulsório, que se intensificou com a migração de pessoas do nordeste brasileiro para outras regiões na busca de oportunidades de emprego. Por não terem êxito acabaram indo parar na rua.”
A prática do recolhimento compulsório passou por toda a década de 70, reforçado pelo período da ditadura militar como prática voltada para a Segurança Nacional. Em SP, por exemplo, surgiu a “Operação Inverno”, que consistia na ação das secretarias de Segurança Pública e de Promoção Social no recolhimento de pedintes e indigentes transitórios ou permanentes, sujeitando-se ao tratamento das instituições policiais, a partir de uma triagem com base nas perícias médica, policial e social. Assim, nasce uma política de circulação para aqueles considerados itinerantes em SP e replicada em muitos outros municípios. Luciano Freitas observou que essa resposta aos migrantes foi muito utilizada na Sul, Centro Oeste e Sudeste.
As respostas institucionais para além da política de segurança pública foram tímidas nesse período. O destaque fica para a instituição do “Auxílio Fraterno”. Se até 1970 os problemas eram os migrantes, agora, observa-se a materialização da articulação do saber policial e assistencial benemerente como respostas institucionais à questão da pobreza urbana. Tem-se as primeiras manifestações de reconhecimento desse segmento social por parte do poder público.
O terceiro momento ocorre a partir da década de 1980. Com a crise econômica brasileira, Luciano Freitas destacou a intensificação do debate sobre o atendimento às pessoas em situação de rua como resultado da desigualdade social, principalmente, mediada pelas discussões provocadas pelos movimentos sociais e grupos ligados aos direitos humanos.
As questões estruturais e conjunturais produzem a vida na rua. Segundo Luciano Freitas, é preciso dar uma resposta a estes contextos com a devida compreensão da população em situação de rua, que passa a ser consequência ao desemprego em massa. A tríade migração, desemprego e rua passa a ser debatida. A gestão de Luiza Erundina (1989-1992) na Prefeitura de São Paulo foi citada pelo pesquisador como o exemplo de responsabilidade pública na oferta de serviços para população em situação de rua.
A gestão municipal na assistência passa a ser matriz construída na rede de serviços. Nos anos 1990 surge os primeiros debates de criação de uma política para a população em situação de rua. É a emergência da questão como responsabilidade pública. Não se tratava de classificar uma questão individual e isolada, mas de um experiencia de desproteção vivenciada de um grupo social. “Passava-se a compreender a questão da vida na rua como fenômeno social coletivo. É resultado das questões estruturais da desigualdade social no Brasil.”
A transição dessa compreensão municipal para a nacional marca o quarto momento, de acordo com Luciano Freitas, que chama essa chave “Da Rua ao Palácio Planalto”. O reconhecimento do Estado brasileiro para as questões desse segmento da sociedade ganha corpo nos anos 2000. A partir de 2004, ampliou-se o debate sobre as pessoas que buscam sobrevivência nas ruas das medias e grandes cidades.
A temática ganha importância no debate público da gestão federal. A sensibilidade do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para questão social começa influenciar nas mudanças institucionais com as políticas públicas para população em situação de rua. A articulação como movimento social estadual e nacional, que se fez representar na luta, traz o reconhecimento à população em situação de rua enquanto sujeito direito, ou seja, ter direito aos atendimentos sociais.
Ao se organizar como coletivo social, a representação da população em situação de rua passa reivindicar direitos e ser reconhecida pelo Estado brasileiro. Tem-se a incorporação desse segmento social nas políticas públicas, com destaque para as políticas de Assistência Social, como resultado das ações de luta. A Lei Orgânica da Assistência Social, em 2005, traz no seu bojo a obrigatoriedade de serviços socioassistenciais para a população em situação de rua. Com dois encontros nacionais dessa política social brasileira surge um modelo institucional a partir do debate e da demanda de gestores, pesquisadores, usuários, trabalhadores etc.
Num processo participativo em 2009, a população em situação de rua é reconhecida como sujeito direito no Brasil. A materialização está no Decreto nº 7.053- 23/12/2009, que instituiu a “Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento. A reorganização das políticas públicas garantiu a atenção a esse segmento social através da Saúde, Assistência Social, Trabalho e Renda e Habitação. Até 2011, a resposta esteve na perspectiva da atenção com mudanças e reorganização. Esse recorte é pequeno mais impacta o novo paradigma para pensar as questões institucionais dessa pop rua.
O quinto momento, a partir de 2012, tem-se a Rua e o Crack. Percebe-se o uso abusivo de crack e outras drogas no espaço social da rua. Essa temática esvazia a força explicativa do fenômeno social pelo viés das questões da falta de trabalho e da migração. “O uso de drogas faz com que as pessoas permaneçam na rua. Surge as pautas de ações governamentais, mas faltam pesquisas e estudos nesse período de 2012 a 2017. As políticas públicas são redirecionadas para essa problemática da ‘crackrolândia’, com a influência da mídia nessas ações deliberadas em torno do crack. O resultado foi a estruturação de antigas representações sobre a pobreza urbana. Quando veio o momento da rua e crack foi perceptível a volta de ações de assistência, segurança e saúde, com foco no recolhimento para sociedade ver. Foi a retomada de práticas institucionais focadas nas velhas respostas.
Enfim, esses cinco momentos sócio-histórico reforçam a luta para que não se reproduzam as práticas fora da perspectiva dos SUAS – Sistema Único de Assistência Social suas, que é o modelo de gestão utilizado no Brasil para operacionalizar as ações de assistência social. A assistência social é parte do Sistema de Seguridade Social, apresentado pela Constituição Federal de 1988.
Para o pesquisador, é necessário romper com as velhas práticas e entender o processo de vida da população em situação de rua com novos paradigmas. Avanços e elementos novos precisam atravessar as ações velhas para melhorar a rede de trabalho. Por isso, os comitês intersetoriais abrem novas perspectivas para articulação e aproximação das políticas públicas sociais. Esse debate tem como fundamento a proteção à população de rua e não da cidade. O fundamento da Assistência Social é pela perspectiva do paradigma do direito, paradigma do SUAS.
Comitê Intersetorial da PJF
A Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) já tem o seu Comitê Intersetorial de Elaboração, Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua. O Comitê Pop Rua – JF foi criado por meio do Decreto n.º 14.489/2021, que tem como proposta elaborar, acompanhar, monitorar e gerir a política municipal para a população em situação de rua. Esse Comitê é composto por onze representantes do poder público e onze da sociedade civil (titulares), sendo três da população em situação de rua e oito de entidades que possuam atuação direta ou indireta na temática da população em situação de rua e respectivos suplentes.