Arnaldo Niskier

Estamos vivendo um tempo inacreditável de perplexidade. A agressão a Fernanda Montenegro, partida de um funcionário da Secretaria Nacional de Cultura, toca as raias do absurdo. Na verdade, fere toda a classe artística, que ela representa tão bem e há tantos anos. A última sessão da Academia Brasileira de Letras registrou manifestação unânime de repúdio.

Conheço essa genial intérprete de Nelson Rodrigues há mais de 50 anos, na verdade, desde os tempos em que ela comparecia ao Instituto Souza Leão, no Humaitá, do qual eu era diretor, para acompanhar os estudos de sua filha também Fernanda. Mãe extremada, queria estar perto de todos os passos da menina, nos caminhos da educação.

Entrevistei Fernanda Montenegro no programa “Identidade Brasil”, no Canal Futura (Canal 534 da NET). Ela fez um belíssimo resumo da sua vida artística e literária, como é conhecida e respeitada. Viveu personagens eternos, como nos filmes “Central do Brasil” (quando foi indicada ao Oscar de melhor atriz, concorrendo com as estrelas internacionais Meryl Streep, Gwyneth Paltrow, Emily Watson e Cate Blanchett), “Fedra” e “A Falecida”, sempre com brilho extraordinário.

Agora, saiu em livro muito bem redigido a sua autobiografia, escrita com a colaboração da jornalista Marta Góes, com o título “Prólogo, Ato e Epílogo”, reunindo nada menos de 70 anos de uma luta verdadeiramente heroica. A obra mostra como começou a trajetória da jovem Arlette Pinheiro (o nome verdadeiro de Fernanda Montenegro): aos 15 anos, entusiasmada com um anúncio na Rádio MEC, fez o concurso para formação de jovens radialistas e foi aprovada, abandonando o curso de secretariado na Berlitz. Se o mercado perdeu uma secretária eficiente, a cultura brasileira ganhou uma de suas principais estrelas. No início, o sucesso veio com as apresentações no rádio, como locutora. Depois, a consagração no teatro, na televisão e no cinema, um sucesso que já dura sete décadas.

Foi convidada duas vezes para ser Ministra da Cultura, nos governos José Sarney e Itamar Franco. Recusou, nas duas oportunidades, argumentando que a melhor maneira de prestar serviços à cultura brasileira seria permanecer atuando nos palcos. Ela não quis emprestar o seu honrado nome a essa atividade, nem sempre muito bem compreendida. De repente, um integrante medíocre desse antigo ministério agride a grande dama do nosso teatro, como se tivesse esse direito. Um ato de pura e sórdida baixaria.

Diante dessa atitude que somente diminui a força das nossas manifestações culturais, o melhor é recordar as coisas boas, como a música “Mulher da Vida”, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, e gravada pela cantora Simone, que homenageia Fernanda Montenegro de forma ímpar e exemplar: “Mulher é muito mais que ter um sexo/É mais que ser do homem/complemento/É mais que ser o avesso e o diverso./Mulher é muito mais que sofrimento/Mulher é muito mais que companhia/É mais que ser sujeito ou objeto/É mais que ser amor e alegria/Estrela Montenegro do universo”.

 

 




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