Por que não Deus? Investigando as razões ocultas por trás da rejeição da Hipótese Deus pela academia – Parte 14

Contra a ilusão kantiana, seguimos Dooyeweerd que supera o fosso da separação entre doxa e episteme, pensamento reflexivo e senso comum, informando que existem duas formas legítimas de refletir significativamente sobre a realidade.

Como herança da filosofia grega, foi sacralizada em nossa sociedade a noção de que o pensamento ordinário, aquele comumente chamado de senso comum, é um tipo de pensamento superficial, enquanto a reflexão teórica é a única capaz de captar o significado real dos objetos. Bourdieu é um dos autores que faz questão de demonstrar que apoia a valorização de sua ciência nesta bipartição hierarquizada.

Segundo Dooyeweerd, a realidade é experimentada verdadeiramente tanto no senso comum quanto na reflexão teórica. A distinção não se encontra na separação entre superficialidade versus profundidade, mas na apreensão totalizante diversa da apreensão fragmentada. A experiência ingênua consiste numa modalidade de experimentação da realidade rica em significado. Desconsiderar os detalhes dos objetos não significa que não sejam percebidos em sua real dimensão. Este tipo de apreensão aborda os objetos em um sentido global que não distingue particularidades, trata-se de uma experimentação unificada e abrangente que capta a unidade de cada coisa em sua diversidade de sentido.

O pensamento teórico, por sua vez, se singulariza como esforço de delimitar partes da realidade, buscando captar detalhes em profundidade. A reflexão crítica é rigorosamente a confrontação de objetos da realidade com a dimensão lógica do observador. Essa forma de experimentar o mundo é igualmente válida se distinguindo não porque a abstração aparta a ‘verdade das coisas’ não perceptível numa primeira aproximação, mas simplesmente no fato de pretender produzir teoria acerca dos objetos.

Na verdade, o pensamento teórico é baseado na reflexão ingênua. Sendo a segunda pré-condição da primeira. O ato científico consiste em buscar as raízes das coisas devidamente já apreendidas no senso comum, isso não tem nada a ver com hierarquização segundo critério de verdade, nem diz respeito à submissão do segundo ao primeiro. Portanto, o que está na reflexão ingênua necessariamente afeta o ato de produzir teoria.

Contrariamente a Kant, não temos necessariamente que formar conceitos para experimentar significativamente a realidade. Na atitude ingênua experienciamos conscientemente os objetos dispostos à nossa volta com uma riqueza particular que é diversa daquela captada pela atitude teórica, esta sim preocupada com conceitos detalhados.

Outra herança de Kant, complementar à anterior, é determinar que o sujeito é quem atribui significado aos objetos. Na verdade, esta é uma flagrante expressão da contaminação de seu pensamento pelo pressuposto religioso centrado no binômio, natureza-liberdade, tal como descrito nos artigos anteriores. Kant deposita tamanha fé na autonomia humana que condiciona o significado do mundo ao que lhe atribui o observador.

Sob esta influência, a academia apresenta-se como núcleo produtor do conhecimento em geral, quando, na verdade, sintetiza um tipo específico de conhecimento, o teórico.

Consequentemente, em nossa cultura, centrada no culto à razão produzidas por sujeitos autônomos (herança iluminista e particularmente kantiana), sagrou-se a perspectiva de que as pessoas só podem conhecer o mundo através das lentes da ciência tornando o campo acadêmico socialmente validado e legitimado como espaço privilegiado de determinação do que é a verdade.

O campo acadêmico passou a possuir em nossa sociedade a prerrogativa de atribuir significados aos objetos, por isso, ocupa um lugar de autoridade. Seu status é assegurado pelo fato de atualmente concentrar a interpretação legítima da realidade.

Os acadêmicos reproduzem a sua autoridade com base na naturalização da ideia de que existem classes de pensamento e que a reflexão sintetizada na academia é necessariamente superior à experimentação das pessoas comuns.

Para manter a aura de superioridade, a academia usa de suas prerrogativas de poder para naturalizar a ideia de que a atitude teórica encontra-se separada e delimitada do pensamento ordinário. Enquanto o primeiro é acolhido socialmente como sendo premente sofisticado, profundo e verdadeiro, o segundo é caracterizado como “pensamento de segunda”, superficial, raso, enganoso, não devidamente refletido, isento de profundidade, sempre limitado e parcial.

Baseado na ilusão kantiana, a academia vende e a sociedade compra como fato que ela é a detentora do poder explicativo da realidade, de maneira que fora do campo acadêmico a apreensão é inexoravelmente duvidosa, incompleta, distorcida e/ou superficial. É necessário o selo dos intelectuais sancionados para que tal ou qual conhecimento seja considerado legítimo.

Como se as verdades científicas não fossem sempre e necessariamente parciais, controvertidas e transitórias, produzidas em meio relações de poder e hierarquias de dominação que afetam necessariamente os critérios de validade.

 




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