Como visto no artigo anterior, Kant acredita na objetividade do pensamento teórico. Este fato carrega um preocupante pressuposto: não existem contaminações que concorram com a racionalidade pura no ato de formar teorias.
Kant solidifica a ideia de que existe um conhecimento objetivo que pode ser alcançado por meio do pensamento teórico. Até aí tudo bem. Porém essa crença engendrou dois pressupostos que influenciaram o pensamento Ocidental e que figuram no alicerce do paradigma científico em voga. A primeira é a fé na transcendência da razão, a segunda é a fé na autonomia ou neutralidade do pensamento teórico.
O legado kantiano lança a racionalidade para um plano transcendental, ou seja, para fora da mente do sujeito pensante. Perceba que o paradigma ignora os agentes que sintetizam teorias, se concentra na racionalidade em si, acreditando que a razão está localizada num ponto externo ao sujeito.
Estando fora, a razão está além e acima do indivíduo, imune ao que o sujeito é ou àquilo que o influencia. Essa crença coloca a razão como uma espécie de entidade autônoma e superior, quase um deus.
Esse imperativo revela-se como uma espécie de fé religiosa quando observamos o dilema básico de legitimidade ao qual está embasado. Pois o que leva o paradigma a afirmar que o pensamento teórico é verdadeiramente imune à contaminações e um conhecimento verdadeiramente autoritativo é o fato de ser racional. Ou seja, a racionalidade é o selo de legitimidade da própria racionalidade. O legado kantiano acredita que é possível haver conhecimento objetivo em função do pensamento teórico e a base dessa crença é a própria razão humana. Como se a razão pudesse por si mesma conferir legitimidade ao que a razão cria.
Por outro lado, imagina-se que a reflexão esteja enredada por um campo de força, fornecido pela metodologia e pelo comprometimento com a busca pela verdade. O paradigma cultiva a fé de que o pensamento metódico-racional é isento de influências externas. Sendo autônomo em relação às crenças que se formam apartadas da razão.
Para tanto, o paradigma simplesmente ignora a existência de uma cosmovisão historicamente determinada que envolve a ele próprio, o campo acadêmico onde se produzem teorias e os pensadores individualmente, como se o pensamento não refletisse muito da cultura na qual encontra-se inserida.
Não há que se falar de pensamento teórico neutro, pois ele é produto da sociedade, sintetizada em campo de lutas e hierarquias de poder, cada indivíduo que produz teoria observa a realidade a partir do contexto que o circunscreve e afeta.
Nisto Bourdieu se encontra com Dooyeweerd, porém o primeiro aborda o problema a partir da sociedade como um condicionamento que atua sobre os demais condicionantes, enquanto Dooyeweerd acredita em uma influência mais profunda que o faz designá-la como “religiosa”.
Como visto em artigo anterior, para Dooyeweerd religião não é o mesmo que confissão religiosa, mas um pressuposto, uma fé arraigada que dirige o indivíduo em todas as suas manifestações. Em outras palavras, cada indivíduo conduz-se segundo aquilo em que concentra a sua crença. Pode ser numa ideia, coisa ou pessoa.
Se o que está por trás da produção científica é um conjunto de crenças, como a própria transcendentalidade da razão, por exemplo, não estamos falando de outra coisa senão religião. E a religião traz necessariamente uma ideia de absoluto. Portanto, quando se nega que Deus é o Criador, outro criador deve tomar o seu lugar.
O ser pensante sintetiza uma teoria que atribui a origem e o sentido àquilo que ocupa o lugar desse criador. Se não é o Deus monoteísta outro Deus precisa ocupar o seu lugar. Pode ser a natureza em si mesma, uma outra divindade, um princípio teórico etc.
Se a origem não está na transcendência é inexorável que ela seja atribuída a algo da imanência, seja ideia, coisa, pessoa etc. Algo do plano imanente toma o lugar do transcendente. Este raciocínio traz consequências desastrosas como se verá mais adiante nesta série de artigos.