Por que não Deus? Investigando as razões ocultas por trás da rejeição da Hipótese Deus pela academia – Parte 09

Dando sequência à nossa investigação acerca das razões fundamentais que explicam o veto interposto na academia para a ‘hipótese Deus’ entre as possíveis explicações da origem e sentido da realidade, continuamos a esmiuçar o pensamento de Herman Dooyeweerd.

Para o jusfilósofo holandês, um “motivo-base religioso” é uma força motriz, um princípio fundamental que subjaz e orienta todas as atividades e modos de pensamento de uma sociedade. Ele é a raiz da cosmovisão que molda a cultura, a ciência, a arte, a política e todos os aspectos da vida humana.

Quando analisou a história do Ocidente, Dooyeweerd identificou quatro motivos-base que moldaram a nossa civilização: forma e matéria; criação, queda e redenção; natureza e graça; natureza e liberdade. Vamos analisar as três dominantes:

O motivo-base “forma e matéria” emerge da filosofia grega como uma dualidade fundamental para interpretar a realidade. Por uma lado, tem-se a Forma (Eidos), que, segundo a filosofia de Platão, refere-se às ideias perfeitas e imutáveis que existem em um reino transcendental. Essas formas são os verdadeiros arquétipos das coisas no mundo material e conferem ordem e inteligibilidade ao cosmos. Para Aristóteles, a forma é o princípio determinante que dá essência e estrutura a uma substância particular.

Em contraste, a “matéria” é vista como algo indeterminado e caótico que recebe forma. Na visão platônica, a matéria é imperfeita e mutável, uma cópia imperfeita das formas ideais. Para Aristóteles, a matéria é o potencial que, ao receber a forma, se torna uma substância concreta e particular.

Para Dooyeweerd, tal motivo-base representa uma tentativa de resolver a tensão entre ordem e caos, estabilidade e mudança, racionalidade e irracionalidade. Porém, não alcança sua pretensão, ao contrário, produz uma visão fragmentada da realidade. Esta dualidade é insuficiente para explicar a totalidade da existência, falhas do ao não capturar sua complexidade e a interconexão.

Dominante durante a Idade Média, o motivo-base “natureza e graça”, por sua vez, é a tentativa de síntese entre o pensamento grego e a teologia cristã . Natureza refere-se ao mundo físico e material, e tudo aquilo que pode ser entendido e explicado pela razão humana. É o domínio da ciência, da filosofia natural e das atividades práticas que lidam com a realidade empírica. Na visão medieval, a “natureza” é a esfera da existência criada por Deus, mas que funciona segundo suas próprias leis e princípios, que podem ser investigados e compreendidos pela razão humana.

Graça refere-se ao sobrenatural, a ordem divina e espiritual que transcende a realidade material. É o domínio da revelação divina, da salvação, e da intervenção direta de Deus. Ela é necessária para elevar a natureza à sua plenitude, suprindo as deficiências da razão humana e da ordem criada. É através da graça que os seres humanos podem alcançar a verdadeira comunhão com Deus.

Essa síntese, longe de harmonizar filosofia grega e fé cristã, apenas criou uma nova tensão entre duas esferas distintas, tal como fizera o motivo grego. Introduzir apenas outro  dualismo que fragmenta a realidade em duas esferas separadas e, muitas vezes, conflitantes, a Terra e o Céu. Ele argumenta que essa divisão leva a outra visão dicotômica da realidade, onde a ordem natural é vista como inferior e necessitando da elevação pela graça sobrenatural.

No alvorecer da modernidade emerge um novo motivo-base, começa com o humanismo do final da Idade Média, se desenvolve plenamente com o Iluminismo e que permanece dominante no nosso tempo: “natureza e liberdade”.

Ele surge da tentativa moderna de entender a realidade a partir de dois pólos fundamentais: a natureza, que abrange todos os fenômenos observáveis e mensuráveis, e a liberdade, que se refere às aspirações humanas de autonomia e autodeterminação.

Dooyeweerd argumenta que essa dicotomia criou um terceiro dualismo igualmente problemático tal como os anteriores. De um lado, tem-se a ciência natural, que busca explicar todos os fenômenos em termos de leis naturais e determinísticas. De outro, tem-se o ideal da liberdade humana, que envolve escolhas morais, culturais e religiosas.

Tais ensejam princípios incompatíveis e contraditórios, gerando tensão um em relação ao outro.

A ciência moderna, especialmente a partir do século XVII, passou a explicar o mundo natural em termos de causalidade e determinismo. Esta perspectiva determinista implica que todos os fenômenos, incluindo a conduta humana, são sujeitos a leis naturais inexoráveis. No entanto, o motivo base de liberdade sugere que os seres humanos possuem autonomia moral e a capacidade de autodeterminação, que parecem transgredir estas leis naturais. Dooyeweerd argumenta que essa dualidade cria uma contradição fundamental: como pode o ser humano ser ao mesmo tempo completamente determinado por leis naturais e autonomamente livre?

O motivo base da modernidade frequentemente separa a racionalidade científica da ética. A ciência moderna busca explicações racionais e empiricamente verificáveis para os fenômenos naturais, frequentemente marginalizando questões morais como subjetivas ou não científicas. Para Dooyeweerd, isso cria uma tensão insustentável: como pode a ética ser relegada ao domínio do subjetivo e ainda assim reivindicar um papel normativo na vida humana? Esta separação ignora a interdependência dos diferentes aspectos da realidade, incluindo o racional e o moral.

Para Herman Dooyeweerd, o dualismo natureza-liberdade exemplifica uma divisão fundamental no pensamento moderno, onde esses dois pólos são inconciliáveis. Essa divisão criou inconsistências que, segundo ele, afastam o ser humano da verdade plena.

Esta é a chave para compreendermos os fundamentos últimos para o impasse que seguiremos explorando nos próximos artigos.




    Receba nossa Newsletter gratuitamente


    Digite a palavra e tecle Enter.